Assim como artista não se definia somente por seus desenhos, o Grupo também acredita que diversidade é que possibilita a evolução.
Há 100 anos nascia Millôr Fernandes (1923-2012), desenhista, dramaturgo, jornalista, escritor, humorista e poeta brasileiro, que escreveu mais de 120 livros e marcou o País com seus inúmeros trabalhos publicados em colunas de revistas e jornais. Com olhar visionário, inspirado pela diversidade e inovação, no ano 2000 Millôr foi escolhido para criar uma obra que espelhasse a filosofia do Grupo Fleury, que também tem uma história quase secular, e passados mais de 20 anos muda de endereço, do Jabaquara para o Brooklin, e a arte não poderia ficar para trás.
Quem chegava ao hall de entrada do Grupo Fleury, no Jabaquara (SP), se admirava com o mural desenho-pintura de 6x7 metros que expunha a obra ‘Queda e Ascensão’, elaborada com tinta acrílica. Millôr criou a pintura em um pequeno formato e os artistas plásticos Renato Brancatelli, Damara Bianconi e Susie Hervatin reproduziram o trabalho na parede da companhia, em agosto de 2000. Simbolizando uma paisagem de São Paulo, em meio a prédios e árvores, a aquarela é composta por 40 personagens, entre eles pássaros que caminham vestidos como pessoas, e homens e mulheres voando nus.
Como forma de homenagear e honrar o legado do artista Millôr, o Grupo Fleury, junto ao arquiteto Fernando Vidal, do escritório Perkins&Will, e do time de criação da Dea Design, composto por Lucila Muranaka, Juliana Hobo, bem como Silvia Kanayama e Mariana Caram, socias fundadoras da agência, foram responsáveis por criar uma releitura da original, levando seu legado e história.
Para o processo de produção do novo painel, que ocupa uma área de 2,6x6,9 metros, localizada em frente à área de vivência, no 2º andar do novo prédio do Grupo Fleury, a equipe utilizou câmeras fotográficas de alta resolução, garantindo que nenhum detalhe fosse perdido e o processo envolveu um olhar cuidadoso de um profissional especializado para fotografia, tratamento e digitalização do original, para que pudesse ser reproduzido e impresso, procurando ser o mais fiel possível. Além de todo o trabalho na pós-produção, que permitiu o alcance da quase completa similaridade de luz e sombra com a obra original.
As imagens foram distribuídas em módulos de diferentes tamanhos e profundidades, que acomodam as diferentes cenas e figuras. Ao todo, são 24 módulos de caixas de alumínio com pintura eletrostática, de tamanhos diferentes entre si, variando entre quatro espessuras (de 1 a 6.5cm).
Esta nova materialidade incorpora o conceito de desfragmentação e reconstrução da imagem sob um novo olhar, para que ele pudesse ser apreciado em sua totalidade e composição, bem como na particularidade de cada cena pensada, emoldurada e destacada da parede.
Informações da placa de agosto de 2000 instalada no Jabaquara
Memória para o mural do edifício técnico administrativo do Fleury
Este mural, desde já, denominado Queda e Ascensão. Talvez seja a única vez que dois termos, antitéticos(!), possam ser usados nessa posição, pois sempre, em todas as de vida e da história, nada e ninguém pode cair antes de ascender, remember, Império Romano. Mas como referência a pássaros e seres humanos, a relação, quando chegamos ao mundo, já estava estabelecida. Os pássaros já tinham ascendido e viviam invejavelmente, na sua admirável condição volátil. E o ser humano só conseguia ascender à custa de aparelhos complicados e perigosos, alguns até a explosão e mais pesados que o ar. Aliás, a gravidade era o que mais obrigava o ser humano a enorme responsabilidades e forçados trabalhos.
Não nos perguntem quando essa situação se inverteu chegando à presente imagem, pois corremos o risco de abandonar nossa reconhecida modéstia e dizer que essa inversão se deu aqui, exatamente quando Fleury sugeriu este mural, com a recomendação expressa de que a pintura não ficasse presa a concepções ligadas diretamente à sua atividade. Quase uma exigência de liberdade absoluta de criação. Como se houvesse essa possibilidade: obrigação de liberdade.
Mas vamos ao feito como foi feito.
Naturalmente, dada a personalidade profissional e artística do autor, o painel não poderia ser abstrato, forma fácil de escamotear a extrema dificuldade atual de realizar um figurativo expresso e aí!, “mudemo”. Mas tomamos esse caminho.
Figurativo – o diabo do figurativo, atualmente maldito, é que ele é reconhecível no significado, e pouca gente tem o que significar. Por outro lado, é evidente que o figurativo fantástico assimila, absorve e critica todas as tendências plásticas dos últimos 100 anos. Nossos colegas de ofício, genericamente chamados de humoristas, são mestres nessa apropriação.
E, em se tratando de um mural, digamos, íntimo, ao qual as pessoas terão acesso muitas vezes, até várias vezes diariamente, é fundamental que a ideia seja apreensível logo, mas sem excessiva facilidade, e seja suscetível de nossas interpretações cada vez que as pessoas veem o mural. O conjunto, esteticamente, tem que ter a mesma atração que teria um “abstrato”, cuja função, porém se esgota aí. Como uma bela cortina ou reposteiro. A ideia, aqui concebida e executada, da inversão de valores, onde os pássaros estão presos ao dia a dia do chão e os seres humanos aparecem libertos da gravidade, atrai logo pela estranheza e ultrapassa a "anedota". Espero, imodestamente, que atinja um pouco o metafísico do "Que raios do céu ele quer dizer com isso”.
Pois é; o que aconteceu nesse mundo que não previmos nem na mais louca ficção científica? Por que os pássaros descaíram tanto a ponto de estarem presos, amarrados, escravizados às funções pedestres que eram só dos seres humanos?
Nunca saberemos porque o quadro apanha os pássaros num momento em que a hipótese de voar já lhes parece natural e definitivamente vedada, Enquanto isso, os seres humanos voam, pairam, flanam, E, isso conquistado, conquistaram como consequência, vê-se, tudo que era natural nas aves, até o despojarem-se de vestimentas, já que a facilidade de deslocamento as faz necessárias, não mais incumbentes (!). O painel pretende também criar um pouco do que hoje se chama de interação, pois as pessoas, sobretudo as de mentes menos poluídas por excesso de informação, tenderão a comentar as figuras é o que elas fazem, tirando conclusões que nem imagino quais serão. Possivelmente estapafúrdias, ou seja, admiráveis.
A proporção do mural, com um terço da largura reservada para uma passagem corredor, permitindo acesso a outras áreas do edifício, trouxe especial dificuldade de execução. A base, bem menor do que o topo do espaço, obrigou-nos à concentração de figuras na parte de baixo. O que, me parece, foi solucionado pela própria temática. O céu, personagem quase em branco, traz naturalmente a sensação de amplitude. O corredor sugeriu a ideia de pintar figuras também nele. Um ou mais pássaros em sua atividade humana, caminhando em direção à abertura. Quem vem pela primeira vez em direção da abertura terá uma divertida visão ao perceber que os pássaros do corredor fazem parte de um grupo maior, à céu aberto.
É só pelo momento.
Não, não é só, Como o mecenas, vale dizer, o Fleury, em nosso contato para confecção do trabalho, surpreendeu-nos com a sensibilidade de dizer que não pretendia sugerir nada institucional, ou seja, a figura do Fleury não estava em jogo na criação do painel. Ao executar este, tentamos devolver a sutileza. O nome do Fleury aparece, e bem nítido, na fachada do prédio ao fundo. Porém devidamente criptografado. Mas vamos facilitar. Qualquer usuário de computação, consultado alista de alfabetos do Windows, descobrirá logo a chave do enigma, podendo, a partir daí reescrever o nome Fleury em qualquer tipo usual.
Ah, na lata de tinta, o letreiro sujo também diz Fleury.
Esperando que o respeitável público nos aplauda pela despretensão e nos critique pela pretensão, pedimos-lhe que volte e traga outras gerações. Mas isso só com o passar dos anos.
MF.
PS.: O desenho-pintura básico foi executado sobre papel-cartão Crescent, de 2,5 milimetros de espessura, não com a intenção de se tornar o trabalho mais apresentável ou duradouro, mas apenas para tornar mais difícil aos executores e assessores se desfazerem dele.
Execução final do painel
Artistas Plásticos: Renato Brancatell, Damara Bianconi, Susie Hervatin
Colaboradores especiais: Professora Sônia Maria TosattiRosa
Pintores da base: Antônio Pinheiro Torres, Cosme José de Araujo, António Carlos de Souza
Produção e coordenação: Rodolfo Felipe Neder
São Paulo, setembro de 2000
Informações da placa de 10 de março de 2023 instalada no Brooklin
Uma homenagem a Millôr Fernandes
Esta é uma reprodução fotográfica da obra Queda e Ascensão, de Millôr Fernandes (1923 – 2012), jornalista, dramaturgo, desenhista, escritor e tradutor. O desenho-pintura foi especialmente produzido por Millôr para o Grupo Fleury, no ano 2000, em razão da inauguração da nossa sede técnico-administrativa anterior chamada Jabaquara.
Pouco mais de 20 anos depois, ocupamos uma nova casa: a Sede Brooklin. Aqui, fizemos questão de trazer conosco a pretensiosa reprodução dessa obra que para nós sempre foi um símbolo da inspiração e obstinação pelo novo, pelo desconhecido, pela transformação.
Esse gesto é uma maneira também de agradecer novamente ao Millôr Fernandes, em memória, por toda a sua generosa inteligência e poder de criação apaixonantes. Mais do que isso: essa reprodução fotográfica é uma forma de contribuirmos para que as obras e a memória desse brasileiro extraordinário, que completaria 100 anos de vida neste ano, possam ser eternizadas.